sábado, 28 de fevereiro de 2015

Construção



Texto produzido pelo meu professor, Hélder Silva, autor do blog A ótica de um míope.

Bastou mirar a parede para ela começar a derreter. A solidez azul se liquefez, alcançou o piso e espalhou-se pelo quarto. Partindo da mesma causa, no violão apareceu uma, duas, três lágrimas até o próprio se desfazer num caldo negro. Esfregava os olhos compulsivamente, esperando como criança se ver livre do horror daquela insanidade de que culposa ou dolosamente era responsável. 

Sim. Augusto sabia que era coisa dele. Quando buscou ajuda: voilá! Disseram que sua cabeça era a causa. Lamentou profundamente não poder arrancá-la de cima dos ombros. Não chegou realmente a considerar a decapitação, mas questionou-se em segredo, tão intimamente que o mesmo desconheceu, a alcançabilidade da vida. A realidade era cada vez mais intangível. 

Augusto era um cara muito reservado, mas comum. Estudava, trabalhava, tinha lá seus amigos e casos esporádicos. Porém, aqueles olhos pretos não escondiam a qualidade opaca com que enxergavam. Dos livros aos turnos, cada pedaço concreto e abstrato comum a seus dias desenvolvia patologias como consequência a exposição prolongada. 

Então, em um dia memorável, assistiu grandes blocos se desprendendo do todo, mergulhando a toda velocidade e desaparecendo em uma profundidade infinita. Desde então, era Ciclope, Midas e Medusa ou nenhum destes. Se sua desventura era fruto de um gene mutante, de sua alma ambiciosa ou de razão divina, desconhecia. Era um trabalhador incansável a serviço da desconstrução, um arquiteto de ruínas¹. 

Das grandes qualidades do ser humano, para o bem ou para o mal, a adaptação brilhou em Augusto e permitiu que este exercesse algum controle pífio sobre seus poderes e retomasse uma fração da vida. Certo dia, não seguro de si, aceitou o convite para a festa de Nina. Era uma noite de sábado bastante agradável e de algum modo se sentia bem. Vestiu-se com um pouco mais de atenção do que costumava dispensar para tal. 

Chegando lá, reconheceu alguns rostos e também a música que tocava bem alto. Procurou algo para beber e Nina foi ao seu encontro com o dedo em riste, balançando, e um sorriso no rosto. Algum momento depois, não muito depois, estava sentado no sofá em meio a uma discussão da qual não tomava parte e uma leve vibração perturbou o que via, neste caso, os gestos expansivos do falador. Dirigiu-se rapidamente para fora da casa enquanto pressionava as pálpebras. 

- O que aconteceu, Augusto? 

Um dos convidados havia o seguido. 

- Afaste-se, por favor... 
- Calma, você não está tão mal assim...
- Meus olhos... Estou doente.
- Ora, não pego conjuntivite tão fácil... Vamos, tire o braço dos olhos e me conte isso direito. 
- Não é... Você não entende... Esses olhos são uma desgraça. 
- Espere um pouco... Use este par. 

Depois de alguns segundos se perguntando o que ele quis dizer com aquilo, Augusto não aguentou de curiosidade e abriu uma fresta pouco acima do braço para espiar. O homem estava desatarraxando os olhos como se fossem parafusos! Então, o viu estender uma das mãos com dois olhos castanhos na palma. Em choque, Augusto não continuou com os questionamentos, aceitou o que gentilmente lhe era dado e seguiu instruções posteriores: substituir os próprios órgãos defeituosos. 

Temeroso, mas hipnotizado pelo onírico da situação, concluiu a troca. Teve uma leve perturbação visual e, segundos depois, enxergou perfeitamente. Nada sofria a realidade. Absurdo! Voltou-se para o estranho e viu que já estava longe, se gabava da cor dos seus olhos foscos para uma morena de vestido colado. Cético, Augusto se levantou e cruzou a pista de dança olhando em todas as direções. 

- Ei, Augusto! Veja!

Dessa vez, o estranho já tinha olhos castanhos novamente, porém maiores e com leves tons de verde. A morena ao lado tinha os de Augusto. E foi assim toda a noite. Começou tímido, puxando conversa com o único assunto que ocupava a mente naquele instante. Estava ávido por todos os pares de olhos daquele lugar. A cada troca, ângulos diferentes do mesmo presente eram levantados. Dali a pouco estava dançando e se divertindo a valer. 

Só o que lhe deu noção do tempo foram seus pés mortificados. Procurava os olhos daquele louco a quem devia a noite. Não sem algum trabalho, encontrou-os com Nina e passou a procurar o dono. Avistou-o se despedindo da mesma morena, aquela da segunda troca. Aproximou-se quando ele já estava só: 

- Muito obrigado, seja lá o que tenha sido isso, não sei nem seu nome... 
- Não há o que explicar. É Bolívar. 

Augusto percebeu que se aproximava a hora de carregar de volta sua sina. Baixou a cabeça e nada mais falou. 

- Coragem – dizia Bolívar enquanto desparafusava – e obrigado por compartilhar como você enxerga. 
- Como pode agradecer por isso? 
- O que posso dizer? Destruição é uma forma de criação², Augusto. Mal posso esperar pelo que você irá construir em seguida, ainda mais sendo conhecedor das falhas antigas. Enfim, já sabe minha forma de ver as coisas. Depois nos falamos mais, abraço! 

E foi embora. 

Via se distanciando o amigo e percebeu que ainda enxergava como ele. Enxergava também como a morena do vestido colado, sua amiga Nina e todas as pessoas com que entrou em contato. Também enxergava como ele mesmo, gerenciando todos esses modos de enxergar e acolhendo-os. Por hora, sem destruir nada, sem nem pressentimentos de destruição. 


¹ Quincas Borba, Machado de Assis. 
² Donie Darko.

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