terça-feira, 19 de maio de 2015

O conto 21

Eram 21:00hs, ela sempre gostou das 21:00hs, sei lá porque. Certa vez, ela me fez ler milhares de artigos sobre signos, para que eu pudesse compreender que o nosso encontro estava profetizado em nossos mapas astrais. Ela era louca por isso, sabe? Sim, ela gostava muito dessas viagens cósmicas, galácticas, interplanetárias, signicas, ou seja lá como vocês costumam chamar.
Na maioria das vezes, eu fingia prestar atenção. Ela falava, falava e falava, parecia não ter mais fim. Queria saber a hora em que eu nasci, para que pudesse descobrir meu ascendente e lua. Como assim eu tenho uma lua? Ela insistiu tanto nisso, que resolvi contar: “Sim amor, eu sou de gêmeos, nasci as 21:00hs do dia 29 de maio.” Ela vibrou, lógico. Era um pouquinho de informação sobre mim, o que ela precisava.
Mais tarde, quando eu já havia esquecido tudo isso, ela me reaparece com um meio sorriso no rosto e um envelope branco. Na hora fiz piada, brinquei e tentei beijá-la, mas ela estava um pouco relutante e meio afastada. Eu a conhecia bem demais para saber que um meio sorriso era um presságio de algo ruim.
Ela me disse que as coisas não estavam indo bem, que os seus problemas na família haviam se agravado, a faculdade a estava pressionando e que ela já não suportava mais. Estava de malas prontas para Buenos Aires.  “Como assim Buenos Aires??” .Surtei. Ela estava adiando o nosso plano de férias? O que estava acontecendo que eu não pudesse resolver? Não consegui obter mais respostas e ela me disse que tinha que ir, mas que deixaria comigo o envelope branco. Explicou que ele continha uma ultima carta que ela havia feito para mim.
Passei por estágios de total abandono do real. Ouvi mil vezes aquelas palavras, sussurradas em minha mente, me dizendo que não dava mais para levar. “Como assim não dá mais?”. Foram dias perturbadores. Nas primeiras dez semanas, não parei de beber um só dia. Na décima primeira, o dono do bar me expulsou por não suportar mais me vender fiado. Perdi o emprego, cortaram a luz, água e telefone de lá de casa. Mas nada importava, eu não estava no presente, tinha resolvido passar um tempo revivendo o passado.
Na décima segunda semana, resolvi que daria a volta por cima. Arranjaria um emprego, pagaria as contas atrasadas, faria a barba e ainda de quebra, cortaria o cabelo. -Ela amava o meu cabelo, mas isso eram águas passadas e eu não me importava mais.- Ia ser um novo homem, arranjaria uma boa garota e quem sabe, depois de um tempo de namoro, pudéssemos nos casar.
Dito e feito, na décima quinta semana, já estava novamente empregado.  A minha vida começou a tomar rumo e pude então me sentir melhor. Foi nesse período em que resolvi ler a carta que ela havia me deixado.  Era longa e cheia de explicações, porém um trecho me chamou a atenção:
                “Não seria nobre da minha parte, pedir à você que espere a minha vida se ajeitar. Tudo que temos vivido é bom e intenso demais para mim, porém, não consigo me manter nessa estabilidade que tem sido a nossa vida. Eu preciso sumir, você sabe que sou assim. Preciso dar um basta em toda pressão que tenho vivido, preciso me sentir viva novamente para que possamos ser felizes juntos.
Você sempre esteve marcado em minha vida, antes mesmo de nos conhecermos, eu já sabia que você viria. Perdoe todo o egoísmo, mas seria pior se eu fizesse com que você largasse toda a sua vida para embarcar em uma loucura minha. Espero que um dia possamos nos ver de novo, e quem sabe, nos ajeitarmos.
Ainda amo e sempre amarei, a tua cama pequena, o jeito como encolhíamos nela para caber e todos os momentos felizes que passamos juntos contando dedinhos dos pés. O teu cheiro vai ser sempre a minha recordação olfativa favorita, a tua boca, sinônimo dos mais tenros e quentes beijos...”
Fiquei atônito, claro. Ela me deixou para seguir a vida dela, mas só agora pude entender. Não era relevante eu estar ou não por perto, ela sempre estaria comigo e por consequência, eu sempre estaria com ela. Éramos os chamados “alma gêmeas”, “feitos para ser”, não importavam as circunstâncias em que estivéssemos eu era tão daquela mulher quanto ela era minha.
Foi nesse momento em que compreendi a essência do amor: a gente ama perto e ama longe também; amamos as feridas e os sorrisos; as chegadas e as partidas; o toque e a recusa. Amamos transbordar em outro ser que também se permita transbordar em nós.  Gostamos de preencher o espaço vazio na cama de solteiro, que sempre nos coube direitinho, mas depois do amor, sobrou espaço.  E é a vontade de não deixar nada faltar ao outro, que nos faz mendigos de afeto, e afetivamente falando, sabemos sempre retribuir.

Ela adorava às 21:00hs, foi assim que nos conhecemos. Às 21:00hs nos beijamos, na véspera do meu aniversário. Às 21:00hs assistimos o nosso primeiro filme juntos, e no dia 21 do mês três, o voo dela partiu. Foram tantos “21’s” que até me pareceu um jogo de cartas. Sabe, ainda sinto a falta dela, porém, sei que às 21:00hs sempre nos reencontramos e contamos os dedos dos pés até formar 21.

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