sai para o trabalho.
É sempre o mesmo ônibus lotado, é sempre a mesma vida lotada de tarefas e atribuições, é sempre o mesmo coração vazio que queria lotar-se de alguma coisa. E não sorri para o motorista, não vê beleza no cobrador. Não olha mais pela janela, porque ela é um quadro já familiar, uma pintura desbotada num museu chamado cidade. Não vê graça nos adolescentes entusiasmados e vivos sorrindo no transporte público.
Acorda de manhã, mas ainda dorme
mas ainda dorme.
Se passaram muitos anos desde a última vez que acordou, passaram dias vívidos e nunca mais voltaram
passaram dias vividos e nunca mais voltaram.
Não há vida sem luz, não há vida sem verdade, não há vida e vai pra nunca mais voltar.
Não dormia bem, vivia com sono; comia bem mas nunca se enchia. É sempre a mesma falta de vida, num ônibus onde muitos existem, alguns vivem, alguns morrem, alguns dormem. Ainda dorme, mesmo de pé, mesmo quando conversa, mesmo quando é o inverso, mesmo quando um estudante cansado dorme no seu lugar.
Acorda de manhã e reclama da vida, reclama da vida, mas de que vida?
Não tem vida para reclamar, reclama da morte. Da morte precoce da juventude, da morte prematura dos sonhos. Reclama desde o menino que não chegou a nascer até ao que já nasceu morto, passando sempre por aquele que ainda vive, pensando sempre naquele que ainda vive. Reclama da vida, reclama das reclamações, reclama que reclama das reclamações de uma vida que reclama. Reclama.
Acorda de madrugada, há um ronco alheio a lhe incomodar. É alheio, é um estranho, não é um cônjuge; é alheio, não é mais um cônjuge. É alheio às reclamações, é um ronco de quem vive, é um ronco de respiração. Acorda de madrugada e pensa na vida, pensa na morte da vida, pensa na morte porvir. Pensa e reclama, e dorme reclamando, e acorda de manhã, sai para o trabalho, mas ainda dorme e reclama da vida.