terça-feira, 2 de junho de 2015

Viva ou morta?


Entrou no apartamento mal iluminado do centro e acendeu a luz: ali estava a realidade. Vislumbrou os móveis de segunda mão, a toalha rendada em cima da mesa, a copa-cozinha troncha e desajeitada. Pelo menos não era a única velharia frágil naquele recinto.

Mais uma vez naquela última semana, sentiu o coração apertar quando percebeu que havia comprado mais pães do que era necessário. Não haviam crianças perguntando pelo pão de creme, não havia marido sujando o tapete com as cascas de pão de sal, não havia alegria esperando por ela depois de um longo e cansativo dia de trabalho. Não havia nada ali de um uma quarentona solitária com móveis ainda mais velhos do que ela.

Era injusto que as coisas fossem assim. Injusto o fato de que você tem direito a quinze dias de folga quando tudo que importa pra você vai embora - quando a ida deles é o motivo da folga. Mas que droga, queria quinze dias de folga para curtir seus filhos, não sua dor!

Ainda podia lembrar. Seus amigos e familiares pendiam-na pra evitar esse tipo de pensamento, mas quando se mora no centro e ouve constantemente as buzinas gritando lá fora, é impossível não lembrar. É impossível não olhar pela janela e imaginar que algum dos borrões na noite fria pudesse ser o New Fiesta preto que destruíra a sua vida.

Mas não haviam Fiestas dentro do apartamento, apenas o aperto no peito, apenas a solidão e amargura. Era uma mulher equilibrada, muitos diziam, mas quem é que consegue se manter em equilíbrio quando toda sua estrutura vai por água abaixo? Quem consegue ter motivo para permanecer quando o motivo pelo qual se vive simplesmente... morre?

Suicídio? Não, era temerosa demais pra isso. Apesar de ter blasfemado mais na última semana do que em toda sua vida, simplesmente não conseguia se imaginar abrindo mão da vida - da vida verdadeira - por causa da dor que sentia. Dizem que quando tudo vai embora, quando até mesmo a esperança vai embora, a fé permanece, mas afinal, em que tinha fé?

Outra blasfêmia, não podia se perdoar por isso. Não podia se perdoar por ter sobrevivido quando todos foram embora, não podia perdoar Deus por isso. Eu não poderia ter ido também, Senhor?

Estava só ali no apartamento um pouco empoeirado, estava só ali dentro de si com suas solidões, mas sabia que não estava só. Estava corrompida por fúria, medo e desespero, mas sabia que não estava só, sabia que por mais fraca que estivesse, não estava só, não seria abandonada.

Loucura esse negócio de fé, não é mesmo? Tinha fé quando toda sua fé fora esgotada, tinha esperança quando a sua havia morrido em um acidente de carro na BR 116 junto com seus filhos e seu marido. Tinha fé quando desistia de viver e era atormentada por buzinas, gritos e para-brisas quebrados. Tinha uma família quando a sua havia morrido.

Pegou as chaves, um casaco e uma sacola de pão e desceu para a noite escura. Bem sabia como eram perigosas as ruas estreitas do centro da cidade, mas sabia também que não estava só e que não poderia deixar a sua família abandonada.

Subiu a ladeira em direção à praça central e ali alimentou seus filhos.

_Senhora, eu e meu marido agradecemos a Deus todos os dias por ter te colocado em nossas vidas.

_É tia, nós também agradece, tia, nós também agradece! Agora conta de novo aquela historinha do homem lá cruz, tia, conta pra nós!

Havia perdido a família há pouco mais de duas semanas, e junto com ela a esperança, a vontade de viver e sobretudo, a fé. Mas não estava só e sabia, no âmago de seu ser, que dentro de si morava o maior dos espíritos. 

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