“Liga pra ela”, pediu-me pela manhã. E fiquei com isso o dia todo.
Ela deve tá almoçando agora, e sei que não gosta de conversar enquanto come. Ela deve tá indo pegar o ônibus pra voltar pro trabalho, e como sei que está com aquela mochila pesada e cheia de livros da faculdade nos braços, juntamente com a blusa de frio que ela pegou pensando que iria esfriar, não vou querer que procure o telefone gritando, que corra o risco de deixar alguma coisa cair e se envergonhar, porque isso é a cara dela.
Ela deve tá no trabalho, fazendo o design de um site pra algum cliente, atendendo um telefonema que nem pra ela é, explicando que esse tipo de coisa não é no seu setor. Provavelmente está preocupada com a prova de amanhã, com uma dor estranha que surgiu em algum lugar estranho do corpo, com aquele curso online que ela não tem disciplina pra continuar, com algum eletrodoméstico que ela não sabe se deixou na tomada. “Tomara que não, tomara que não”. Ela deve tá preocupada com alguma coisa, pode apostar, conheço essa mulher e sei que se ela não estiver preocupada, não será ela mesma. Não quero trazer mais preocupações, então eu não vou ligar.
Na pior das hipóteses, ela deve não estar querendo falar comigo depois de ter chorado na minha frente. Deve estar querendo fugir de mim e de qualquer coisa que a faça colocar sem querer um layout triste e depressivo no blog, qualquer coisa que faça sua dor estranha fazê-la chorar enquanto chega mais um pedido, enquanto precisa trabalhar na propaganda que aquela loja nova encomendou.
Ela deve tá com raia de mim, por ter deixado que ela chorasse sem ao menos me importar. Deve tá querendo que eu ligue. Não, deve tá querendo que eu suma.
“Você já ligou pra ela?”
Ela deve tá indo tomar um capuchino com aquele colega de trabalho que lhe deu carona esses dias. Deve estar com uma ruga entre as sobrancelhas porque não sabe se salvou o não o trabalho que estava fazendo, e sei lá, vai que o computador reinicia. Deve estar se esforçando pra não rir das piadas dele, ou se esforçando para rir, e atender uma ligação minha com certeza não será agradável, muito menos se ele estiver dando em cima dela.
Vai ver agora decidiu relaxar, mas é tarde demais e precisa ir pra faculdade, e eu não vou ligar agora, não vou deixá-la tensa outra vez, ela vai precisar se concentrar na aula. Ela deve aceitar outra vez a corona que talvez ele ofereça, e como o som vai estar ligado, vai ignorar o telefone tocando.
Se estiver na aula, ela deve estar anotando tudo que o professor diz. Deve também ter colocado o celular pra gravar cada palavrinha que ela deixa passar, e se o celular tocar nesse momento, além de desconcentrá-la, vai interromper a gravação. Às oito e meia vai ligar pro irmão durante o intervalo entre duas aulas, pra que ele não se esqueça de dar o remédio da mãe pontualmente às nove horas, nem que se esqueça de vir buscá-la às dez.
Ela deve ter chegado em casa, mas vai conversar com um pouco com os pais, no pouco tempo que a vida permite isso, e depois partir pro banho. Vai ver agora ela já dormiu, vencida pelo cansaço, ou tá estudando porque não estudou nada depois da nossa briga, não tinha cabeça pra isso. É, ela deve estar estudando, vai ver tem prova amanhã, não vou incomodar.
Meu telefone toca. Não fui capaz de reconhecer o número devido ao grande cansaço que pesava em minhas pálpebras, era quase uma da manhã e eu ainda estava tentando estudar. O sono estava quase me vencendo.
“Só vi a sua chamada perdida agora a noite”, ela disse depois do meu alô.
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